terça-feira, 1 de março de 2016

O BASTANTE E O SUFICIENTE

[Ed René Kivitz]

Deus chama Abraão para que deixe sua terra e sua parentela para seguir a uma terra de prosperidade e abundância onde se estabeleceria como pai de uma grande nação. Apesar de Sara, sua mulher, ser estéril, Deus promete a Abraão que sua descendência seria tão numerosa quanto as estrelas do céu. Passados 25 anos a promessa se cumpre no nascimento de Isaque, que Sara e Abraão tomam nos braços como razão de ser de sua existência e semente de um futuro de prosperidade sem fim.
O happy end entra em colapso quando Deus pede que Abraão ofereça seu filho, seu único filho Isaque, em sacrifício. Matar o filho significaria perder a razão de existir e arrancar a semente do futuro antes mesmo que ela brotasse. Não haveria mais uma grande nação, e a primeira das estrelas sem conta seria apagada deixando o céu vazio de luz e a alma de Abraão na mais densa escuridão. Mas Abraão obedece em silêncio. Simplesmente levanta o cutelo sobre a garganta de seu filho Isaque para imolá-lo em oferta a Deus, conforme havia sido solicitado.
No momento último do ato sacrificial Abraão é interrompido por um anjo que lhe ordena poupar a vida de seu filho: a disposição ao sacrifício valera tanto quanto o sacrifício em si. Abraão e seu filho Isaque voltam para casa e deixam para trás o Monte Moriá que passa para a história como o altar de um sacrifício que, embora jamais consumado, catapultou Abraão do status de um homem temente a Deus ao panteão de pai da fé, abençoando assim todas as famílias da terra.
Deus chama Moisés para que saia de sua terra e de sua parentela para libertar e conduzir o povo, descência de Abraão, à terra prometida. Moisés reluta, mas é convencido por Deus a aceitar a empreitada. A história segue uma trama jamais imaginada nem mesmo pelo mais criativo dos roteiristas: enfrentamento de Faraó, dez pragas sobre o Egito, abertura do Mar Vermelho para que o povo escravo siga a pés enxutos rumo à liberdade e ao futuro prometido por Deus. Naquela madrugada de saída do Egito, o sonho sonhado todas as noites durante pelo menos cinco séculos se tornava realidade. Moisés à frente e seu povo atrás. Deus sobre todos.
No deserto, meio caminho da terra prometida, Deus, que falava com Moisés face a face, como quem fala a um amigo, desabafa sua irritação para com o povo e desiste de seguir viagem. Garante a Moisés que a escolta de um anjo responsável por oferecer direção, proteção, e provisão. Deus garante o êxito do projeto, mas nega sua companhia. Ou o Senhor vai conosco, ou ninguém arreda o pé daqui, diz Moisés para Deus num ato de justificado atrevimento. Deus então se compromete a acompanhar Moisés e o povo à terra da promessa, Canaã, terra de leite e mel.
Abraão e Moisés são objetos de revelação de duas questões opostas e complementares que assolam todos aqueles que desejam a intimidade com Deus. Ao pedir a Abraão que sacrifique Isaque, Deus está perguntando: quero saber se você é capaz de viver comigo e mais nada. Ao negar a Moisés sua companhia, mas garantir que nada mais lhe faltaria, Deus está perguntando: quero saber se você é capaz de viver com tudo, menos eu.
As duas respostas, de Abraão e Moisés, revelam que se é verdade que Deus e mais nada é suficiente, não é menos verdadeiro que tudo, sem Deus, não é o bastante.

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